© j. c., 2005
uma sombra que se prolonga para além do objecto. a luz que se espraia pelo espaço. o frio que se sente no coração. um dia todas as palavras morrerão antes de serem ditas. um dia todos os sons ficarão ocos de significados, distantes de promessas, ausentes de ilusões. cada mão será tão só o tecido que te sustenta. cada beijo será tão só o prenúncio da vida que falhas.
é noite e o frio rasga-me a carne. é noite e eu ilumino as ruas com a sombra que sou. é noite e o meu corpo dança nas ausências de escuridão. eu danço. deixo que o frio me mate e danço. um movimento quase cadenciado. ausente. danço e esqueço-me de quem sou. esqueço-me do tempo e de como morri sem ter podido renascer. sem asas não sei voar. sem asas sou outro corpo qualquer.
o sal que me seca a boca é de lágrimas. mergulhei aqui. deixei que rios fluíssem por mim abaixo até que encontrassem rumo. secaram antes que assim pudesse ser. e as lágrimas deixaram de ser lágrimas porque secaram à espera de alento que as secasse. choro ainda. agora. hoje. e tu dóis-me. como todas as coisas inacabadas. como tudo o que prolongo na minha vida. como eu.
eu sou este corpo que me carrega. uma ausência que dói. efemeridade. esfumo-me num ápice. agora estou. agora não estou. pisei uma rede da qual me fiz prisioneira sem saber. provei do meu veneno e sucumbi. um peito vazio. ar em vez de sangue. morte em vez de luz. a luz e a sombra. a tua luz. a minha sombra. a sombra que se prolonga para lá do objecto. o tempo que arrasta todas as indefinições. e as palavras são o que de mim resta. o que ficou depois do temporal. o dia há-de escurecer. será noite. e eu serei sombra. a luz adormece. acordará depois. a sombra persiste. para além do que podes controlar. para além do que queiras ou não queiras. se fugires, só uma coisa irá contigo. sombra.
e a doçura das palavras vãs pode ser punhal cravado na carne. vidro moído debaixo das unhas. aço frio a rasgar o ser. nem só de ausências se vive. nem só de promessas. nem só de silêncios. eu vivo de ti. uma mão estendida. o tempo parado atrás. cada momento com o sabor do eterno. cada passo com a certeza do que não se tem. e sigo caminho sempre em torno da luz. luz e sombra, indissociável fusão. a sombra que se prolonga para além da luz. a sombra que persiste porque existe luz que a concebe. contigo será sempre manhã.
[ luz & sombra ]
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lénia rufino
10.12.05
publicado no dn jovem, edição na net de 24 de março de 2006
4 comentários:
como sempre... gostei.
«contigo será sempre manhã.» (como gostaria de ter sido eu a escrever isto)
oh! SE quero voar....! é mesmo para voar uns minutos que venho aqui ler estes retalhos de ouro!
muitos parabéns!
b.
«um dia todos os sons ficarão ocos de significados, distantes de promessas, ausentes de ilusões. cada mão será tão só o tecido que te sustenta. cada beijo será tão só o prenúncio da vida que falhas.»
...bravo! os teus textos estão cheios de imagens fortes...
que as palavras continuem a colorir de intensidade a tua vida, o teu painel, os teus retalhos de segundos revelados a outros que te lemos...
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