| paredes |


nas tuas mãos
eu sou chuva sangrenta
e perguntas que não ouso
guardar nos bolsos
como na memória
enregelada
como manhãs de inverno
violento
em que o dia só se apazigua
depois do amor

e fazer-te amor
é trepar por ti acima
escalar todas as dúvidas
não prender no arnês as incertezas
não dizer nada
não perguntar nada
deixar apenas
que o som seco das respirações
que falharam
rasgue o silêncio
e se cumpra o infinito.

| nostalgia |

nem sempre sei dizer da nostalgia. nem dos dias que encarcerei na memória, trancados a mil chaves, impossíveis de resgatar. porque nem todas as memórias são boas. nem todos os silêncios são sagrados. nem todas as ausências são prenúncio do que virá a seguir. e em cada detalhe arrastam-se as certezas de que somos incontornáveis, porém finitos. diante do espaço somos meros pedaços de pó. inimportantes. ausentes. alegóricos. como as histórias que se contam com moral no fim, aquelas a que ninguém entende sequer o propósito. por vezes, o melhor é não dizer nada. deixar que seja o tempo a falar por nós. deixar que os gestos nos façam pessoas. deixar que a voz se solte e que se cante em qualquer sítio onde se esteja. todos os dias são bons, desde que estejamos vivos. todos os dias são dádivas. quando vives e te sentem respirar. quando ages e deixas o teu legado para trás. quando na memória só haverá sorrisos teus. lágrima nenhuma, apenas sorrisos. é isso que deixas para trás. e é por isso que valeu a pena.

Para a N.

| um lado de lá |

nas ombreiras das portas
e nos entretantos
há gatos pousados
em contra-tempo
e a luz que inunda os tacos
aconchega
e expulsa os sinais
e dá-nos uma casa nova
a que podemos escrever a história
sem passados nem angústias
e o único som que ecoa
é o da tua voz
num "amo-te" que perdura
esquecido em molduras
encostadas às paredes
porque ainda não decidimos
em que ângulo as vamos
pendurar.
e o silêncio dos gatos
a que és alérgico malgrado o vício
enche-te os tempos mortos
em que me esperas
sem me procurar.

| dangerously |

eu podia dizer que dos teus pés saem caminhos. e que da tua língua sai o sal que me viola de vez em quando. e que das tuas mãos nascem palavras que cortam como facas e que te peço que cales, com medo do que possa vir depois. mas tu não estás. és apenas uma sombra esbatida e ausente. que se assume consoante o sol. que, como os gatos, se espreguiça em atitude de pecado mortal, desafio perante o mundo. que, como as cobras, se enrola e envenena, mortalmente, apenas por prazer.

ou podia baixar os braços, arrumar na gaveta a guerra, assinar o tratado de paz e seguir em diante. podia apenas suspirar mais uma vez e deixar que o momento se torne solene por ser único, único por ser solene. podia apenas sossegar, engolir o último instante de ar e deixar que o mundo se apagasse como uma lâmpada ou como um candeeiro na curva da autoestrada.

podia apenas abrir os braços e deixar que te aninhes e que faças de mim ausência ou, quem sabe, menos ainda. podia ser maior do que tudo isso e deixar-te de herança palavras para que construas com elas as pontes que te faltam, os dias que te faltam, os abismos que te faltam. toda tu és uma coisa que me esmaga. um tremor de terra numa noite de inverno. uma palavra dita fora do lugar. toda tu és consequência. e não saber o que vem a seguir.

então, em silêncio, como aos gatos, faço-te uma festa pela estrada das orelhas enquanto te espreguiças, barriga de encontro ao parapeito, patas em desalinho, língua bífida pronta para matar.

| serpentes |

de repente o tempo pára. no teu relógio os segundos congelam e entramos numa dimensão paralela, uma lateralidade inexplicável, uma espécie de triângulo das bermudas factual. dizes tudo o que te apetece porque depois sairemos dessa dimensão e será como se nada fosse. escolhes as palavras dando primazia às que magoam e dilaceram. és assim: podendo escolher, escolhes ser ácido. eu oiço, ausente, mas gravo tudo o que me dizes. cada palavra é um traço feito a cinzel, sobre uma pele já demasiado escrita. andamos os dias em passadeiras rolantes contrárias: quando tu vais, eu volto; quando eu vou, tu regressas. talvez seja porque nesta dimensão paralela não há espaço para combinações. tudo são acasos e improbabilidades. depois, ainda do lado de lá, agarras-me a mão, que colocas no teu peito, olhas-me nos olhos e esperas que o tempo descongele e avance, já do lado de cá.

e eu ouvi tudo o que me disseste, como se num sonho. e apesar de recordar cada palavra, é como se não tivesses sido tu a falar comigo, é como se não tivesse sido a mim que disseste coisas impossíveis de ouvir. e eu, do lado branco da vida, esboço um sorriso magoado, porém esquecido e continuo a beijar-te como só eu sei fazer.

um dia morder-me-ás a língua e morrerás envenenado.

| break even point |

eram seis da tarde e chovia. não era primavera, mas podia ser. o rosto dela prendia-se nas folhas e os olhos vagueavam, soltos e trémulos, perdidos. acabara. não sabia exactamente quando lhe tinham desaparecido do peito os sentimentos, mas sabia que não tornaria a encontrá-los. não sabia porque se tinha deixado arrefecer, mas sabia que não voltaria a agoniar-se. sabia, porém, que estava algures entre morta e vazia e não gostava disso. mas não conseguia prender o olhar a nada que fosse, por mais de três segundos. entrelaçava os dedos como que a perguntar o que haveria de ser de si, mas isso não bastava. não encontraria aí nenhuma das respostas que procurava e apeteceu-lhe chorar. todavia, as lágrimas eram coisa que desaparecera muito antes dos sentimentos e por isso soube-se fria. gélida. pensou que não tornaria a encontrar-se em sorrisos, em mãos alheias. absorveu a sua solidão como uma coisa fatal, que duraria para sempre e, apesar da falta de voz, quis poder cantar um fado. nas janelas sujas a chuva traçava rios. as margens mostravam-lhe que, apesar dos dilúvios, nem tudo desaparece. e as pedras da calçada, lá fora, ensopadas, diziam-lhe que chorasse até não poder mais. mas ela já não podia mais havia muito tempo. por isso não soube se era aquilo uma inevitabilidade ou apenas um estar temporário que se curasse quando o outono morresse e, no frio dos dias pequenos, a vida lhe trouxesse um silêncio qualquer.

[ tango ]

cabelo apanhado com força, olhos negros esfumados, boca vermelha-pecado. um vestido preto, rasgado até ao cimo da perna direita. meias de rede e saltos altos. atitude felina, de fome, de luxúria, de prazer prometido para mais tarde.

ele olha-a do outro lado da sala, onde está feito voyeur, à espera. ela meneia a anca e passa a mão pelo pescoço, um gesto de sedução pensado ao segundo. avança para ela e agarra-lhe no pulso, puxando-a para si. prende-lhe a mão com força e ela resiste, porque faz parte da coreografia que não existe, mas que ela cria só para si. ele abraça-a com o outro braço e dança. pernas que se entrelaçam, olhos que se comem, as mãos dele pelo corpo dela, o olhar furioso dela, mais por desejo que por despeito e a dança segue. apertam-se como se o mundo fosse acabar por ali e palavra nenhuma os interrompe. só a música, quente, cadente, voraz os penetra com força. e o mundo desaparece e a sala são só eles e os passos de tango que correm por eles como uma torrente.

a música pára, o suor aviva-se na pele. as mãos dele no corpo dela, o vestido rasgado no chão e o desejo a possuir o momento, numa dança de fantasias e promessas por cumprir. como num tango vadio, ouvido entre vielas de buenos aires. como numa vida inventada à pressa, com tudo por refazer.