| dangerously |

eu podia dizer que dos teus pés saem caminhos. e que da tua língua sai o sal que me viola de vez em quando. e que das tuas mãos nascem palavras que cortam como facas e que te peço que cales, com medo do que possa vir depois. mas tu não estás. és apenas uma sombra esbatida e ausente. que se assume consoante o sol. que, como os gatos, se espreguiça em atitude de pecado mortal, desafio perante o mundo. que, como as cobras, se enrola e envenena, mortalmente, apenas por prazer.

ou podia baixar os braços, arrumar na gaveta a guerra, assinar o tratado de paz e seguir em diante. podia apenas suspirar mais uma vez e deixar que o momento se torne solene por ser único, único por ser solene. podia apenas sossegar, engolir o último instante de ar e deixar que o mundo se apagasse como uma lâmpada ou como um candeeiro na curva da autoestrada.

podia apenas abrir os braços e deixar que te aninhes e que faças de mim ausência ou, quem sabe, menos ainda. podia ser maior do que tudo isso e deixar-te de herança palavras para que construas com elas as pontes que te faltam, os dias que te faltam, os abismos que te faltam. toda tu és uma coisa que me esmaga. um tremor de terra numa noite de inverno. uma palavra dita fora do lugar. toda tu és consequência. e não saber o que vem a seguir.

então, em silêncio, como aos gatos, faço-te uma festa pela estrada das orelhas enquanto te espreguiças, barriga de encontro ao parapeito, patas em desalinho, língua bífida pronta para matar.

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