hoje acordo e sou eu de novo. olho as mãos quentes da cama, as unhas cuidadas. poder-se-iam encontrar 10 ou 15 adns diferentes aqui. acordo e o sol entra pelas frestas óbvias da janela. a manhã vai longa. eu estou aqui.
são 19 horas. de inverno faz-se noite mais cedo. trabalha-se menos. o frio tolhe os desejos. a roupa custa mais a despegar-se do corpo. o movimento dói. a solidão sufoca. de inverno fode-se menos. são 19 horas. primeiro telefonema da noite. atendo. quinze minutos depois a campainha toca. não lhe reconheço o rosto, mas é possível que já tenha estado com ele antes. há muito que me proibi de memorizar rostos e nomes. não é isto que eu quero no meu passado. isto há-de ser só uma zona morta de mim, a que perco o rasto depois.
levanto-me e percebo que é realmente muito tarde. não me preocupo. os meus dias começam de noite e tenho meia tarde pela frente. tomo banho, visto-me, poupo-me à maquilhagem a que mais logo me obrigarei. por agora sou só eu. sem aditivos. como qualquer coisa que desencanto na cozinha e saio de casa, hoje é dia de ler. entro na minha livraria preferida. passo 10 ou 15 minutos só a sentir o cheiro dos livros. depois procuro algo que me prenda a atenção. encontro um livro de poesia que abro aleatoriamente. leio três versos e já não o pouso. procuro um romance que acabo por encontrar. saio dali e vou para o meu café. o silêncio falso do café a ser moído, de cafés a serem tirados, de caricas a baterem no fundo do caixote do lixo metálico, qualquer silêncio que seja falso serve para me embalar a leitura.
ao sétimo cliente descanso. são 4 da manhã. estou cansada e apetece-me parar. tenho mais três clientes marcados. é possível que apareça mais um ou dois que não espero. serão sete da manhã quando me for deitar. no corpo, histórias que não são minhas. prazeres unilaterais. vícios decadentes. na alma, o mesmo vazio de sempre. mais um dia a eliminar da memória. mais um dia que nunca existiu.
não deixo que nada disto me afecte. este é apenas o meu corpo. um corpo. o que sente, recorda, ama, não é o meu corpo. não gosto do que faço. gosto do que tenho cá dentro. vivo uma vida que é a minha. que escolhi. percorro o caminho onde ninguém me obrigou a entrar. sei ao que vou. vivo uma vida com que aprendi a lidar. a minha consciência dorme tranquila todas as noites. não estou com nenhum homem com quem não queira estar. não faço nada que me dê prazer. o desconhecido é afrodisíaco. há muito que deixei de me culpar. escuso-me a juízos de valor e sou feliz. sou aquilo a que vocês chamam puta. sou aquilo a que eu chamo livre.
publicado no dn jovem, edição na net, 7 de abril de 2006
2 comentários:
tão bonito... tão cru e frio e verdadeiro. porque muitas vezes, se calhar mais do que aquelas que julgamos, é mesmo assim. penso nesta perspectiva destas coisas muitas vezes. ainda bem que há por aí alguém a partilhar o meu ponto de vista. a diferença é que consegue desenhar esse ponto de vista com letras e palavras que eu não saberia usar.
:)
depende sempre da perspectiva. para uns é uma coisa. para outros é outra. qual será a mais certa?
(like your view better)
beijo grande*
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