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juntar pó ao sal dos dias. ficar em silêncio, em silêncio profundo de culpa e remorso, um silêncio de abismo já aqui a dois passos.
penso sempre em ti quando acordo, sabes? vem-me à memória o incómodo que era acordar enleada nos teus braços, mais perto do sufoco que do amor incondicional. e tu só sabias dormir assim, o teu corpo quase fundido no meu, a que não restava sítio nenhum por onde fugir.
demasiado calor, dizia-te sempre. e tentava escapar-me, mas tu, mesmo a dormir, agarravas-me ainda com mais força. eu acabava por adormecer cansada e vazia, sem forças para te pedir distância. tu acordavas a meio da noite para me beijar. sussurravas-me o teu amor inteiro ao ouvido e eu acordava também no zumbido estéril das tuas palavras que pouco me diziam. não me mexia, ficava quieta até adormeceres novamente e me dares breves horas de paz.
o amor era uma coisa estranha, naquele tempo. gostava de ti por seres assim, puro, quase diamante por lapidar. e odiava a forma como gostavas de mim. prisões nunca me agradaram e fugi delas a vida inteira. e tu enleaste-me. rede de pesca atirada ao mar e eu, peixe indefeso, sem ter por onde me escapar.
nunca percebeste como me massacrava a tua dedicação extrema. preferia as ausências. teria preferido que não estivesses sempre ali. teria preferido a inconstância de não te saber meu para sempre. a vida é mesmo assim, não é? nunca estamos bem com o que temos, nunca se é inteiramente feliz.

obrigaste-me a partir. dizer-te que não te queria, que tinha simplesmente acabado, não seria nunca suficiente. não terias entendido. disse-te, um dia, que precisava de pensar. fingiste não perceber, fechaste ainda mais o cerco, puseste-me sob o peso da tua tristeza e eu nada pude fazer. por isso, um simples adeus não bastaria. tive que ser má. tive que inventar uma cabra e torná-la real à pressa. tive que me transformar no pesadelo com que nunca poderias viver. e mesmo assim aguentaste algum tempo. começaram os telefonemas, as mensagens, as saídas às escondidas. não exactamente às escondidas, porque fazia com que soubesses mas quis que parecesse que te estava a esconder as coisas. quis que desconfiasses. e que soubesses, no final. tantas vezes as mensagens e os telefonemas foram para a minha mãe e tu a achares que havia mais alguém. e saía, dava-te desculpas esfarrapadas, incongruentes. e depois enfiava-me no cinema, em sessões da meia-noite. umas vezes via o filme, outras adormecia profundamente. sabia-me bem dormir sem o peso do teu corpo. preferia o incómodo da cadeira estofada há anos que a violência do teu amor a dormir comigo, quase em mim. voltava depois para casa. a caminho despejava por cima de mim dois esguichos de um perfume de homem qualquer. valiam-me as amostras que me davam em perfumarias. nada exagerado, apenas o suficiente para que pensasses que tinha estado com outro homem. o suficiente para te massacrar.

tu sabias. e simplesmente não te queixavas. via-te o semblante triste, as olheiras profundas de quem não dormia à espera que eu chegasse. via-te cansado e sem forças. e tu nunca te queixaste. preferias partilhar-me a perder-me, disseste-me um dia. escolherias esse caminho, se fosse o único que te permitisse teres-me. não me deixavas saída possível. o que seria pior que uma traição assim, gato escondido com rabo de fora, tão evidente que seria impossível negá-la? resolvi subir a parada. sabia que ia magoar-te e que ficarias numa agonia sem retorno. mas era a última opção.

foi numa tarde de outono. chegaste a casa e estranhaste a porta destrancada. chamaste por mim e tudo o que ouviste foram gritos. foste andando devagarinho pelo corredor. os gritos cada vez mais altos. os meus gritos, que tu não ouvias há meses, desde a última vez que tínhamos feito amor. a porta do quarto entreaberta. os estores puxados para cima. a chuva a bater na janela. eu e ele num sexo violento, sem amor. sexo. tu à porta, parado. eu por cima dele, de costas para ti. voltei-me e vi-te. afastei o cabelo da cara, prendi-o com uma mão, a outra no peito dele. continuei. não abrandei nem acelerei o ritmo. continuei como se não estivesses ali. ficaste à porta até acabarmos. estático, gelado, pálido, sem pinga de sangue a correr-te pelo corpo. viste os meus orgasmos e o dele. acabámos, eu saí de cima dele, deitei-me sobre o braço que ele me estendia, aninhei-me não te disse palavra nenhuma. beijei-o. acariciei-lhe o peito num gesto íntimo e de carinho. começaste a dar pequenos passos para trás. saíste de casa. voltaste dias mais tarde, soube-o pela ausência das tuas coisas. não voltei a ver-te.

passei a dormir com a leveza da solidão. com o peso da culpa e do remorso. agora, aqui sozinha, a cama fria e enorme no espaço que não ocupas, penso se não poderia ter sido de outra forma. e sei que não. enleaste-me na tua teia e não me deixaste saída que não fosse mortal. a culpa vive comigo. tu não. e era exactamente isso que me faltava para ser feliz.

publicado no dn jovem, edição na net, 4 de outubro de 2005

3 comentários:

Carlota 21 setembro, 2005 19:15  

Escreves maravilhosamente... Parabéns!

sahara 05 outubro, 2005 16:27  

parabéns! they just can't get enough of your talented words :)

beijo*

Quaid 25 janeiro, 2006 01:25  

Potente!

Fiquei sem palavras ... E tu com tantas e que uso fazes delas :)