[ deep ]

não disse nada. agarrou no casaco que tinha atirado para cima do sofá mal chegara a casa e saiu. deixou os gatos no hall, a arranhar a porta como que a pedir-lhe que voltasse, fechou a porta atrás de si e saiu. nem sequer a fechou à chave. puxou-a, apenas.
teve que pensar onde tinha deixado o carro. a repetição do gesto baralhava-lhe a memória. depois lembrou-se e apressou o passo. colocou o painel do rádio e procurou uma estação de jazz. encontrou a paris-lisboa e pensou no que teria sido diferente se ela fosse antes uma simples rapariga parisiense. não soube se seria realmente diferente ou se estaria em paris, exactamente agora, a entrar no carro e a procurar um posto de jazz no rádio, se fosse parisiense. ligou o carro, acendeu as luzes e arrancou devagarinho. percorreu as ruas numa marcha lenta, desapressada. onde ia podia ir sem pressas. lisboa, ao cair da noite, é uma cidade linda. as luzes a descer sobre o rio, o sol a pôr-se no horizonte, o vento a soprar devagar. era final de setembro, o tempo em que tudo morre para nascer de novo. percorreu a lapa e a graça, desceu até ao rio. parou em alcântara, a olhar os pescadores de canas estendidas para a água, os iscos molhados, peixe nenhum capturado ainda. olhou a outra margem do rio e pensou que talvez tivesse bastado ter nascido do lado de lá. às vezes é preciso tão pouco para nos mudar a vida. ligou novamente o carro e entrou na avenida de ceuta. seguiu para a ponte já sem trânsito. as pessoas felizes jantam a esta hora, pensou. foi devagarinho evitando os buracos. escolheu a faixa da direita em cima da ponte. conduziu devagar até meio. parou abruptamente, quatro piscas ligados e ela fora do carro. colocou o triângulo e simulou uma avaria. daria tempo. não pediria ajuda e ninguém pararia para ver o que se passava. aproximou-se da grade. subiu subtilmente. a noite a cair iludia-lhe a distância que a separava das águas frias lá em baixo. era perto e era longe e não interessava porque essa era a distância que era preciso percorrer. contou até dez. olhou o cristo-rei já iluminado. olhou lisboa uma última vez. memorizou-lhe a beleza inigualável e pensou novamente se teria sido diferente se ela fosse outra mulher qualquer. inspirou o cheiro do rio que lhe chegava misturado com os cheiros da cidade. fechou os olhos. abriu muito os braços. e deixou o corpo cair.

publicado no dn jovem, edição na net, 23 de outubro 2005

1 comentários:

sahara 05 outubro, 2005 16:06  

wonderful. sempre deliciosos, até numa última despedida.

beijo*