para a sara.
beijei-te com displicência o rosto. não te olhei nos olhos nem fiz por alargar o momento. sabia que, costas voltadas, não tornaríamos a ver-nos. não sei como sabia. sabia, apenas. sentia já entre nós a distância das coisas que não existem em comum. nada me ligava a ti, nem sequer o passado que partilhámos ou as recordações que são dos dois. olhando para trás, parece-me uma névoa. como se tivéssemos estado a sonhar e não soubessemos o exacto momento em que acordámos.
não me despedi de ti. deixei ficar tudo exactamente igual. a tua caneca meia de chá esquecida em cima do lava-loiças. dois pares de calças atirados à toa para cima da cadeira ao lado da cama. os teus livros no chão do quarto. deixei aquele tempo suspenso ali. como uma trapezista magrinha que se equilibra sem esforço num cabo de aço que percorreu vezes sem conta. pensei exactamente nisto: uma trapezista magrinha num equilíbrio perfeito. o risco e a segurança suspensos no mesmo ponto. como nós, que sempre tivemos tanto de risco como de segurança.
antes de partir, sento-me por instantes na beira da cama. passo a mão pela esquina da mesinha de cabeceira e não consigo deixar de pensar que fui feliz aqui. vêm-me à memória alguns instantes soltos. trechos de conversas, o sabor de um beijo depois do gelado, os barulhos que fazias no exacto momento em que adormecias, a mania que tinhas de sacudir o cabelo para cima de mim quando acabavas de tomar banho. coisas banais que nos construíram. coisas banais que acabaram por nos destruir.
oiço a tua respiração pesada. não sabes o que fazer às mãos que já puseste e tiraste dos bolsos vezes sem conta. sabes que não adianta pedires que reconsidere, que fique só mais uns dias a ver no que dá. não dá em nada, ambos sabemos. atrasar a partida é apenas retardar a morte. escolho a eutanásia para este amor tetraplégico. levanto-me da cama, agarro no meu casaco e numa pequena mala que levo sem esforço até à porta. sinceramente, não me custa partir. havemos de sobreviver. ninguém morre de amor, digo. tu baixas os olhos, engelhas a testa e, por mais que tentes, não consegues sorrir.
todas as despedidas são últimas, ainda que alguma coisa regresse depois. o que volta nunca é o mesmo que partiu. nunca. há sempre algo que muda. qualquer coisa que se perde, qualquer coisa que se ganha. pode nem ser nada. pode ser só uma impressão. despeço-me de ti com a certeza de que o que sou hoje morre aqui. haverei de reconstruir-me, mas não serei igual. e, ainda que volte daqui por uns tempos, não serei eu quem regressa. nem será para ti que regresso. esta despedida ter-me-á feito de novo. teremos mudado os dois e o que existe agora entre nós também será outra coisa qualquer. prefiro partir sem planos, sem metas nem limites, foi o que te disse. beijei-te com displicência o rosto. evitei o frio dos teus olhos. murmurei um Até já e fechei sem mágoas a porta atrás de mim.
[ last goodbyes ]
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lénia rufino
7.10.05
publicado no dn jovem, edição na net de 30 de outubro de 2005
4 comentários:
comment written at reticencias.
(adorei, como sempre.)
beijo grande*
Lenia, Tive que vir aqui dizer-te que ainda bem que não apagaste o teu blog "boneca de papel". acedita que durante muito tempo foi um refúgio para quem já não acreditava que o amor existia, e conseguia ler nas tuas palavras um pouco desse tesouro perdido e esquecido. Adoro a forma como escreves. Boa sorte.
Excelente texto, belíssima escrita...adorei!
Ès uma excelente escritora, em cada blog revelas a capacidade de expôr a pessoa genuína que deves ser. Obg por te partilhares, é bom emocionarmo-nos com as vivências de alguém que muitas vezes nos são comuns e que nos ajudam a entender os dias e as noites. Continua!
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