[ mikado ]

foi numa noite igual a outra qualquer. mais fria, talvez, mas nada que me marcasse por aí além. estava frio e por isso acendemos a lareira. acendemos luzes suaves e velas com cheiro a baunilha. puxámos um edredon vestido de vermelho e aninhámo-nos no sofá. poderíamos ter feito amor a noite inteira. a história terminaria aqui. dois corpos quentes na urgência do amor feito com tempo. fim.

puxámos um edredon vestido de vermelho e aninhámo-nos no sofá. tu poderias ter adormecido. eu poderia ter ficado horas a fio a ler. a história terminaria aqui. duas vidas juntas numa cumplicidade que não precisa de regras. fim.

puxamos um edredon vestido de vermelho e aninhamo-nos no sofá. abrimos a caixa de mikado e puxamos a mesa para perto de nós. arranjamos espaço. seguras os pauzinhos com cuidado, acertas as pontas, alinhas a sorte. tiras as mãos de repente. dezenas de pauzinhos coloridos por cima da mesa. começo eu. por cada pauzinho falhado respondo a uma pergunta. no mikado revelam-se segredos.

falho o primeiro ao fim de treze. ris-te com aquele ar maléfico que já te conheço tão bem. tenho que responder. só a verdade vale. não, não estava apaixonada por ti da primeira vez que fizemos amor. tua vez. manténs a mão firme até ao sexto pauzinho. e dizes-me que sim, que pensas muitas vezes noutras mulheres. mas que são pensamentos-água, que vêm e vão. inconsequentes. os pauzinhos coloridos e imóveis, estranhamente enlaçados sobre a mesa, desafiam-me. inspiro, expiro e começo a retirá-los um a um, sem deixar tremer a mão. até que efectivamente tremo.

sorrio e termino o jogo sem voltar a deixar que a mão hesite. agarro cada pauzinho com a máxima destreza. não arrisco responder a mais perguntas. não que tenha algo a esconder. mas este, como todos os outros jogos, foi feito para eu vencer. tu sorris e percebes. não é enleada que me levas a lado algum. deixa-me ir. abre-me a estrada, dá-me a mão e deixa-me caminhar por mim. se tiver que fazer um desvio, espera por mim à beira da estrada. ou continua a andar. eu correrei até que te encontre. e nunca te perderei o rasto porque isso seria também perder o rasto de mim.

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