[ puzzle ]

trago nas mãos feridas em sangue. toco-te e tu não sentes. toco-te e o sangue fica comigo. ficam comigo as máculas, as chagas. ficam comigo as angústias e as noites de adormecer duvidoso. o meu sangue é um líquido espesso e quase pesado. um líquido transparente que se esfuma em anéis circulares. outros nem tanto.

ainda hoje de manhã te olhei por detrás das imagens secretas. por detrás das janelas fechadas, o pó é sempre o mesmo. o meu. olhei-te e nem deste por mim. vi-te dormir , atirado em cima da cama desfeita no calor que a noite te trouxe. o cabelo espalhado sobre a almofada, o respirar pesado sobre coisa nenhuma. olhei-te. vi-te. senti-te o pulsar do sangue. o coração-máquina. os olhos fechados sobre os sonhos onde não consegui entrar.

acordei e senti-te em mim. as mãos que nunca me tocaram, a boca que nunca me respirou. senti-te a ausência e coisa nenhuma se materializou em mim. fechei de novo os olhos. breve flash que não pude conter. fechei os olhos e entrei em ti. vi-te sorrir e dizer coisas sem sentido, como ecos de palavras ou frases sem fim. vi-te baixar o olhar e olhares-me mesmo assim. ouvi-te a voz a procurar o tom e soube que o encontraste perdido ali. falas sempre tão baixinho nos sonhos em que te visito.

trago nas mãos feridas em sangue que hão-de sarar. por sobre as nuvens cinzentas há sempre um véu que se abre e te acolhe. por sobre as nuvens há sempre o que nunca se viu nem se viveu. e as mãos que te tocam acolhem-te o desalento. alinham-te o cabelo espalhado sobre a almofada para a seguir o desarrumarem. porque as coisas são como são e não como as supomos. porque tu és como és e eu não quero mudar-te.

esta noite sonhei contigo. dizias baixinho, a sorrir, qualquer coisa breve que não consegui escutar. prometeste que a repetias um dia, quando estivéssemos a sós e o tempo nos puxasse deste para outro lugar. quando a ilha se abrisse e as janelas fossem molduras de momentos a guardar.

esqueci as feridas que trazia, em sangue, nas mãos. esqueci o que me violou, o que me partiu, o que me construiu. não importa. somos todos feitos de pó. somos todos puzzles impossíveis de resolver.

publicado no dn jovem, edição na net, 21 de abril de 2006

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