[ o coração que me acolhe ]

percebi cedo que a vida é um jogo complicado. demasiado cedo, aliás. quando devia estar a ser acarinhada pelas duas pessoas que me conceberam, fui largada num sítio frio. ia ser bem tratada, garantiram-me. mas não fui. não sou. falta-me aquele bocado de mim que deveria ter crescido com eles.

sou demasiado nova, dizem-me. e já pouca esperança me resta. para isto, sou velha. tenho 5 anos. chamam-me daniela. raptaram-me do futuro que me esperava. cancelaram-me as hipóteses de ser uma miúda normal, com uma vida normal, a enfrentar os problemas normais e a saborear os carinhos normais. sou uma hipótese falhada, um erro de cálculo dos meus pais. que preferiram viver com o vazio de me perder a assumir as dificuldades de me ver crescer. abandonaram-me aos 2 meses, à porta de uma casa qualquer. era verão, mas estava frio. talvez fosse já setembro.

fui crescendo rodeada de outros miúdos como eu e só agora, na escola, me apercebo de que sou diferente. de que me fizeram diferente. falta-me um pai e uma mãe que tomem conta de mim e me ensinem a caminhar, a cair e a levantar-me. revolto-me porque sei que não mereço. tinha tudo para ser uma grande mulher e isto há-de fazer de mim sempre uma aposta gorada. raiva é o bicho que cresce indomável dentro de mim.

há tempos disseram-me que vinham uns senhores ver-me. virei costas. quero lá saber. eles vieram, mesmo assim. trouxeram-me gomas e livros e quiseram passear comigo. deixei-os a falar sozinhos no alpendre. não dou sequer oportunidade para ser abandonada outra vez. eles voltaram na semana seguinte, e na outra e na outra. houve um dia em que aceitei ouvi-los. não lhes virei costas logo ali. mas achei que, se falasse com eles, eles não voltavam nem traziam gomas e presentes e sorrisos. voltaram. eram um casal giro, a marta e o nuno. não somos nada parecidos, não sei porque é que os julgam meus pais. gosto deles porque me tratam bem. acho que me tratam como tratariam um filho, se o tivessem.

passados meses de gomas e livros e passeios, fui passar com eles um fim-de-semana. depois outro, e outro, e outro. chegaram as férias e quiseram que fosse com eles. tive medo que não me quisessem depois disso, mas fui. tenho sempre medo que, quando me trazem de volta ao orfanato, seja a última vez. tenho medo de não os ver mais. por isso mantenho-me longe. brinco, sorrio, converso. mas não me entrego. obrigo-me a pensar que um dia eles se vão embora e nunca mais me vêm buscar. obrigo-me a pensar que o meu mundo sou só eu.

a marta chama-me filha. às vezes também a trato por mamã. mas tenho medo. o abandono é uma dor fininha que custa muito a sarar. e se um dia eles não voltarem? e se um dia for só eu outra vez? dizem-me que sou velha para ser adoptada. a marta diz que um dia vou viver com eles e serei filha deles. não sei se acredite. sofro por antecipação uma perda que o tempo me tem provado que não vai ser real. agarro-me ao sonho de ser, um dia, deles. e de nos ensinarmos uns aos outros como se vive quando se vive de amor.

publicado no dn jovem, edição na net, 13 de julho de 2006

1 comentários:

Anónimo 11 abril, 2006 18:26  

é quase isto que leio nos olhos de cada criança institucioanlizada que visito e conheço.

cresceu-me um sorriso triste nos lábios quando li o que escreveste.

:)