[ slow angels ]

para a ana.

damos as mãos como quando éramos miúdos. atravessamos a rua onde poças de água se fizeram regatos, depois da chuva violenta. saltamos dentro das poças e rimos como crianças. estar contigo é estar serena, sabes? trouxeste-me da terra todas as raizes e da vida todas as certezas. não tenho pergunta nenhuma por responder. é como se, juntos, fossemos um puzzle acabado de montar.

as ruas estão pesadas de silêncio. ouvem-se carros ao longe e uma ou outra sirene. nos prédios, cubos de luz desenham retratos de vida abstractos. aqui vive-se, ali já se dorme, ali alguém faz amor, além uma mãe amamenta o filho e ali um casal discute. ou talvez seja outra coisa qualquer.

trazemo-nos no rumo suave que fomos traçando. deixámos de lado os ajustes quando vimos que as nossas estradas paralelas se sobrepunham e iam para o mesmo sítio. aquele pontinho de luz lá ao fundo, vês?

ouço-te aquele "amo-te, pequenina" que me aprisiona sempre. beijo-te as mãos geladas e os lábios quase roxos. o inverno está a acabar, mas continua frio. hoje está frio e tu dizes que é melhor eu ir, para não adoecer. sorrio-te, respondo-te ao amor com amor e passo a minha mão na tua cara. és doce como os sonhos felizes. subo. entras no carro devagarinho, acendes um cigarro e arrancas. chego à janela a tempo de te ver acenar, mandar-me um beijo e sorrir.

[...]

a dor vem como uma pedra atirada às costas. uma dor funda que me cega e me arranca um vómito feroz. ouço. não acredito. saio de casa a correr. chove de novo, uma chuva mansa que se confunde com as minhas lágrimas. corro e perco a noção do tempo e do espaço. há vidros por todo o lado. há gente à volta. a minha voz solta-se e ouço-me, como um eco, a chamar por ti e a dizer que não. não podes ir. não podes deixar-me. o aço amolgado do carro emoldura-te o fim. quero ir contigo. caio e já não sei onde estou. quero ir contigo. leva-me, por favor. aquela luz, a luz pequenina que é o sítio para onde íamos... anda. agarra-me a mão. agarra-me a vida e não te deixes adormecer.

pegam em mim, tentam levar-me dali. não querem que veja como morres, que morres. não querem que fique com esta imagem a doer pela vida fora. mas a vida acaba aqui. levas contigo tudo de nós. e, sem que saibas, levas-me. agarram-me e pedem-me que não te olhe, que te deixe ir. pedem-me que me sente, que beba água com um comprimido qualquer. não quero águas nem comprimidos. quero a tua voz ao meu ouvido, "amo-te, pequenina". quero a certeza de tudo o que íamos ser. quero ir contigo sem saber para onde. porquê? porquê? as luzes são sombras. a chuva molhou-me e eu não quero saber. as sirenes ao pé de ti acordam-me mas esta não sou eu. não posso ser. o mundo girou depressa demais. ainda agora estava ali a ver-te acenar pela janela do carro, iluminado por aquele pontinho vermelho que era o cigarro que fumas sempre quando me deixas e conduzes de volta a casa. ainda agora te estava a beijar as mãos geladas e os lábios roxos e agora já não sei de ti.

[...]

perdi a voz. perdi a luz. a minha pele baça dos dias que mal pude respirar. a mesma dor no peito, pedra atirada com força às costas. o mesmo vómito cruel que me engasga se te vejo aqui. é dia de me despedir de ti. não consigo olhar-te. quero, e não consigo dizer-te adeus. chove e a chuva funde-se com as minhas lágrimas. choro em silêncio porque perdi a voz e a força. choro em silêncio porque te perdi. porque me perdi contigo e não sei como voltar.

tu és um anjo e eu já não sei tomar conta de ti.

publicado no dn jovem, edição na net, 18 de maio de 2006

6 comentários:

Olinda Gil 03 maio, 2006 11:29  

Tristemente lindo... espero que seja ficção da melhor (e não realidade da mais infeliz)

lénia rufino 03 maio, 2006 12:25  

olinda... é ficção baseada em realidade. na verdade, acho que é muito mais real do que eu pensava...

[obrigada pela visita. acompanho-te no dnj...!]

Fatma 07 maio, 2006 14:28  

Quero aproveitar finalmente a oportunidade para dizer que gosto muuuuito dos pedaços deste mundo que já acompanho há alguns anos no dnjovem. Sou fã. E não tenho neste momento muitas palavras para dizer como aprecio o teu trabalho. Fica o silêncio pelo gosto e a vontade de continuar a ler.

Fatma

eliana 11 maio, 2006 09:22  
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
eliana 11 maio, 2006 20:08  

A morte é uma passagem, é como nascer.
É voar para bem alto e não poder olhar para trás, e depois de todo o esforço de uma vida deixar lágrimas em vez de sorrisos.

Maluma 01 junho, 2006 17:22  

Não sabia que escrevias tão bem... aliás, não sabia sequer que escrevias...

De repente, falaram-me do teu blog e em especial deste post, por ser uma historia que... bem... toca diferente!

Gosto da forma como escreves e como as tuas palavras transmitem sentimentos tão verdadeiros...

Não te dou parabéns por escreveres assim, porque penso que as pessoas que o conseguem fazer desta forma (como tu fazes)merecem antes um obrigado! :)

As tuas palavras fazem voar!