[ o rosto indecifrado ]

foi como uma espiral que ela nunca controlou. solitária desde sempre. na escola, era a miúda que passava os intervalos a ler um livro qualquer. a miúda que deambulava pelos corredores sozinha, de head-phones enfiados nos ouvidos, suspensa num mundo que era só dela. o mais curioso é que tinha amigos, era extrovertida, faladora. mas gostava do tal mundo só dela. os pais, trabalhadores empenhados em dar-lhe o melhor, optaram por esperar melhores dias para lhe dar um irmão. esses dias nunca chegaram. cresceu sozinha, a tomar conta de si. aos 8 anos saía da escola e ia para casa. aquecia o almoço, comia, fazia os trabalhos de casa e ficava a ler ou a ver televisão o resto da tarde. tornou-se independente, aprendeu a depender apenas de si, a fazer tudo sem ajuda nem companhia de ninguém.

por ser assim, a rapariga sem marcas, a rapariga que passava sem deixar rasto, pensava que ninguém a reconhecia. seguia na rua e, se encontrasse um amigo de longa data, não o cumprimentava porque tinha a certeza de que ele não a reconheceria. achava-se dona de um rosto indecifrado, de traços que, por demasiado incomuns, eram facilmente olvidados. e achava que não deixava nas pessoas memórias de si própria. uma suspeita infundada, obviamente.

olhava-se ao espelho e via um rosto de traços fortes. a tez morena a serenar-lhe a expressão algo violenta. os olhos pequenos, rasgados, a remetê-la para naturalidades que não eram a dela. perdeu a conta às vezes que se viu obrigada a explicar que não, não era nem macaense, nem chinesa, nem japonesa, nem tailandesa, nem indiana, nem egípcia, nem italiana, nem marroquina, nem coisa nenhuma que o valha. é simplesmente portuguesa. olhava-se ao espelho e raras vezes gostava de si. gostava mais se se abstivesse do rosto por inteiro e focasse apenas um detalhe. a boca carnuda e vermelha. os sinais espalhados e caídos em pontos de sedução. as sobrancelhas bem delineadas. o queixo firme. as maçãs do rosto salientes.

duvidava se lhe diziam que era bonita. nunca se achou sequer assim-assim, quanto mais bonita. corava, ficava sem resposta e não conseguia, por muito que lho dissessem, acreditar. ela, a rapariga com respostas para tudo, ficava calada se lhe diziam que a viam bonita.

por se achar irreconhecível, passeava sempre despreocupada pela rua. tanto lhe fazia se estava na rua dela ou a três mil quilómetros de casa. ela era a mulher-névoa, a mulher que nunca seria notada. um dia, em itália, a meio da ponte vecchio, enquanto comia um gelado como só há em florença, sentiu uma mão no ombro. no meio da amálgama de turistas apressados e excitados por toda aquela beleza, nem sequer ligou, limitou-se a desviar-se ligeiramente, para deixar passar quem lhe pedia, supostamente, licença com um toque no ombro. a mão, porém, manteve-se lá. uma voz aproximou-se dela e, quase num murmúrio, disse-lhe Olá, Isabel. ela, a mulher-névoa, achou demasiado estranho que alguém a reconhecesse. ainda por cima ali, a 2250 quilómetros de lisboa. olhou por cima do ombro e viu um amigo de infância de quem já mal se lembrava. teve que parar por um instante para tentar lembrar-se do nome dele. respondeu com um sorriso e uma ampla incapacidade de reacção. ele sorriu de volta, perguntou-lhe se estava bem e, depois da resposta, desapareceu no meio da multidão. indecifrável como o rosto dela.

publicado no dn jovem, edição na net, 1 de junho de 2006

7 comentários:

eliana 21 maio, 2006 12:02  

São esses pequenos sinais que nos fazem crescer por dentro e ver quem realmente somos.

Andy More 23 maio, 2006 19:50  

Olha posso também colocar este no meu blogue, com o teu inteiro conhecimento. É que textos com estes testemunhos é sempre de louvar e levá-los até além fronteiras para ver se as ideias aclaram nas pessoas é sempre bom não achas???

ou será [ o rosto indecifrável ]

Beijos

sahara 23 maio, 2006 21:58  

reconheço esse rosto. reconheço principalmente a alma que (lhe) pintaste.


e reconheço, adorando, essa escrita que de ti escorre.

beijo grande* :)

sahara 23 maio, 2006 21:59  
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Klatuu o embuçado 22 junho, 2006 14:30  

Muito, muito bom!
Dark kiss

lucie 25 agosto, 2006 21:05  

tb gostava de colocar no meu blog se possivel...

*leio-te aqui e noutras paragens e gosto muito!

lucie 25 agosto, 2006 21:06  

tb gostava de colocar no meu blog se possivel...

*leio-te aqui e noutras paragens e gosto muito!