[ o peso da morte ]

o meu avô morreu há dez anos, a minha avó este março. nunca, até hoje, quis ir ao cemitério. dez anos depois da morte do meu avô, e sem contar com o dia do funeral da minha avó, hoje foi a primeira vez que me abeirei da campa, aquela que os acolhe aos dois, para rezar.

eram três da tarde e o sol a esta hora está sempre em brasa no alentejo. trinta e sete graus ou coisa que o valha. não era hora de ir visitar mortos, avisou-me a minha mãe. mas era a única hora a que eu, ainda viva, podia visitar estes mortos. fomos. a minha mãe abriu com dificuldade a pesada porta de ferro, a fechadura inchada pelo calor a não querer colaborar. o cemitério não é grande. três talhões de cada lado, seis ou oito mortos por fila. descemos pelo caminho principal. distraio-me do que vou fazer. leio as lápides que me rodeiam. vejo datas e fotografias. absorvo a beleza deste silêncio morto, sereno. recordo alguns rostos de quando era miúda. dois ou três tios que faleceram vencidos por tromboses ou apenas gastos pelos anos, velhotes que eram para mim dados adquiridos naquela aldeia triste.

vou ziguezagueando por entre os mortos, pergunto quem são os que nada me dizem. páro nas fotografias de homens e mulheres novos demais para morrer. a minha mãe conta-me histórias, desvenda-me a morte que os levou ali. sinto-me num museu e a ideia revela-se-me tétrica. eles, ali parados, nada nos podem fazer. posso perguntar tudo, falar das flores de plástico feias que os sufocam, achar medonhas as lápides que os separam do mundo.

duas ou três campas chamam-me a atenção: uma miúda de dezanove anos que, descubro depois, morreu com uma embolia cerebral há coisa de dois anos; o avô da minha prima favorita, morto de encontro a um comboio sem que ninguém saiba se foi acidente ou suicídio; a melhor amiga de infância da minha mãe, mais nova do que ela, derrubada por um cancro na cabeça.

ali estou demasiado perto da morte. olho para a minha mãe e penso que, em vez da isabel, podia ter sido ela. olho para o senhor zé e podia ter sido o meu avô. olho para a ana margarida e podia ter sido eu. somos tão frágeis perante a morte, penso. sem que nada nos avise, podemos simplesmente desaparecer. olho para mim e sinto que me falta fazer ainda tanto. quero viver tanto que não posso dar-me ao luxo de deixar-me morrer. mas eu não escolho. sou escolhida. vivemos o melhor que podemos, para morrer sem que possamos escolher como. somos frágeis, penas leves nas mãos da morte. que vem sempre de noite, sem se fazer esperar, sem nos dar tempo para que digamos todos os "amo-te" que deixamos sempre para amanhã. sem nos dar tempo para emendar erros, para pedir perdão, para nos reconciliarmos connosco. perante a morte, somos apenas corpos atingíveis. suaves passados sem mais nada a dizer.

publicado no dn jovem, edição na net, 22 de setembro de 2006

2 comentários:

sahara 28 agosto, 2006 04:28  

adorei, lénia. é tudo isso. e apesar do peso continuar o mesmo, parte também mostrou conforto. or whatever word you'd prefer to insert in that space :)

beijo grande*

Cinnamon 05 setembro, 2006 16:05  

a vida nos cemitérios é um mundo aparte. que contra-senso