[ struggling ]

keep your head above the watter.

era inverno e estava o frio que ser quer nos invernos rigorosos e sem chuva, gélido. ela andava perdida, mãos enterradas nos bolsos, pensamentos enterrados longe. chegava de mansinho e abria as janelas que fechava logo a seguir porque o frio lhe gelava tudo, inclusive os pensamentos. mas ficava ali um bocadinho, a ver a árvore semi-despida, pacientemente plantada no quintal. depois descia, bebia um café ou fazia um chá verde e subia novamente, para fingir, durante sete horas e meia, que não se lembrava de nada.

ele chegava, ouvia-se o bip do alarme ao trancar o carro, ouviam-se os passos dele na entrada e a mala do portátil a ser pousada no chão. cinco segundos depois, o tempo de cumprimentar os colegas, ouviam-se novamente os passos dele na escada e sentia-se um suave travo do seu perfume. assomava-se à porta do gabinete dela e dizia-lhe bom dia. ou então ia até à secretária dela, apertava-lhe a mão e dizia-lhe bom dia. ou então puxava-a pela mão, abraçava-a, perguntava Estás bem, querida e dizia-lhe bom dia. ou dava-lhe um beijo quase-na-boca e dizia-lhe bom dia.

ela respondia a tudo com um sorriso e falava dos casos e falava dos tribunais e marcava-lhe as audiências na agenda e perguntava-lhe se precisava de alguma coisa com o mesmo sorriso de esfinge de sempre. e ele ficava sem a conseguir ler mas não se preocupou com isso até ao dia em que lhe disse que não a conseguia ler e ela lhe disse que era porque não queria que ele a lesse e ele percebeu que havia qualquer coisa que ela estava, em vão, a tentar esconder.

breathe before you drown.

e houve um dia em que o beijo de bons dias foi um beijo de quero-te para mim. e ela entrelaçou a sua língua na dele, como uma promessa de amor para sempre. como nos filmes demasiado fáceis. e foi por isso que não foi fácil, porque ela, metade mulher, metade esfinge, achou demasiado fácil apaixonar-se por ele e ele por ela e então quis apenas que fossem amigos, apesar dos beijos, apesar das horas passadas a sonhar com minutos impossíveis, apesar do frio gélido do inverno rigoroso, apesar da distância e da proximidade. apesar do amor que lhe tinha decidiu que não podia ser fácil e portanto complicou o que poderia ter sito somente uma banal história de amor. e então ele lutou e fez das tripas coração e usou todos os clichés, ofereceu-lhe rosas em bouquets pirosos, escreveu-lhe post-its que lhe colou no monitor, ligou-lhe a horas pornográficas, directamente para o voice mail, apenas para dizer que a queria, arranjou quem lhe fosse fazer uma serenata, atirou-lhe pedras à janela, quase até lha partir, esvaziou-lhe os pneus do carro, perseguiu-a pela cidade, soube sempre onde ela estava, com quem e a fazer o quê. mas não soube que ela também o amava e que a fuga dela era tão somente a sua forma de prolongar aquele amor, de o tirar do corredor da morte das coisas demasiado fáceis a que ela não conseguiria nunca sobreviver. e então complicou-lhe ainda mais a vida, fugiu dele como o diabo foge da cruz, ignorou-o, tratou-o como se trata uma parede qualquer, fingiu que não o via, usou e abusou da sorte.

até ao dia em que ele, esgotado de tanto se consumir por ela, de achar que ela era uma serpente e de se ver sem futuro nem nada onde se agarrar resolveu que o melhor era desaparecer e tirar um ano de licença sabática para ir para qualquer lado onde ela não estivesse, apesar de todos os lugares lha fazerem lembrar, principalmente porque, onde quer que fosse, ele a levava consigo acorrentada no coração. e ela sentiu-lhe a falta e quis falar com ele, procurou-o, percorreu os caminhos dele, virou este mundo e o outro à procura dele, apenas para lhe dizer bom dia, para lhe dar um beijo quase na boca e para lhe dizer que aquilo sim, era um amor para toda a vida, dos difíceis, quase impossíveis que eram os únicos que ela sabia viver.

turn over to see nothing.

ela regressou a casa, sem o encontrar. nem soube que ele esteve sempre sentado no chão da sala, horas e horas a fio, a reler todas as mensagens, todos os emails, a ouvir todas as músicas que lha traziam de volta. não soube que ele esteve sempre ali a treze minutos de casa dela, perdido e mutilado porque pensou que ela, metade mulher, metade esfinge, lhe colocara um enigma que ele não conseguiu ainda resolver. e ele não soube que ela o procurou mundo fora, que chorou mais do que o possível, que viveu de ar e esperança semanas a fio e que se sentiu morrer por dentro quando achou que não havia nada a fazer. embora a esperança, essa viúva persistente, lhe tenha segregado todos os dias que ele havia de voltar. e ela foi ao único sítio onde era impossível que ele estivesse, apenas para imaginar como seria vê-lo ali, à porta de casa dele, chaves na mão pronto para sair. e por casualidade ou por conveniência desta história de amor, ele estava mesmo à porta de casa, de chaves na mão, pronto para sair. e ela entrelaçou a sua língua na dele, como se fosse uma cobra-capelo, e jurou nunca mais o deixar fugir.

1 comentários:

O diabo está nos detalhes 13 janeiro, 2009 03:03  

Está bem gerida a tensão narrativa. Gostei.